domingo, 6 de fevereiro de 2011

MEU PATRONO

MEU PATRONO
Recebeu o Premio Mérito Cultural 2010 como o melhor discurso do ano
concedido pela Academia de Letras, Artes e Música de Ituiutaba.

Meu patrono

Marco Túlio Faissol Tannús

Discurso de posse na Academia de Letras Artes e Música de Ituiutaba --- ALAMI.
Ituiutaba, 20/08/2010

Meu coração bateu forte quando soube de minha aceitação como membro da Academia de Letras, Artes e Música de Ituiutaba, a ALAMI. Não pensei que seria assim. Mas as pernas bambearam e as mãos tremeram.

Por que somos tão fracos e tolos? Não sou tolo. Não somos tolos. Tolo de mim se acreditasse que esta honra com que hoje me cumulam não seria o que verdadeiramente é: voto de confiança e chamado à responsabilidade.

Voto de confiança pela antevisão do que, sinceramente, não sou, mas, por isso mesmo, posso vir a tornar-me. Voto de confiança porque, pouco me conhecendo, crêem ver em mim alguma esperança para as letras. Voto de confiança porque os que em breve tratar-me-ão por colega, são, antes de tudo, uns crédulos.

Crédulos e ingênuos, benevolentes e amigos. Mas rigorosos por desejarem maior a minha responsabilidade de aprimorar a escrita, de escolher melhor as palavras, de atentar bem menos contra nossa língua mãe. A última flor do lácio, inculta e bela, a um só tempo, esplendor e sepultura.

Se Bilac é excessivo, sempre belo é ouvi-lo.

Mas coube a mim escolher um patrono. E dele falar. Justificar porque é, para mim importante, sendo importante, também, para a arte a que, presume-se, me entrego.

Vacilei, titubeei, tergiversei, amarelei. Quem seria meu patrono?

Cheguei a pensar em uma figura controversa, para causar algum frisson. O calmo Ênio ouviu-me as intenções com um semblante absolutamente impassível. Ruminante, até.
E fez-me perceber, sem que uma só palavra dissesse, que casa de amigos não se escandaliza, preserva-se.

Mas quem? Quem seria meu patrono?

Cogitei Fernando Sabino: mestre dos contos e crônicas. Aqulele escritor que me acompanha desde a mais tenra idade. Que me fez emocionar com o encontro marcado e me fez delirar com as aventuras de Viramundo.

Porém, Sabino não seria, porque outro, antes de mim o capturara. Shame on him.

Seria Rubem Braga, o senhor das crônicas? Não. Não se fica à vontade ao lado de reis.

Até que Drummond veio-me à mente . O Carlos dos contos de aprendiz. O Carlos das poesias simples e magras como ele. O Carlos da sublime emoção contida.

Ele também é rei. Não se fica à vontade ao lado de reis. Mas há, na sua obra, um que de pé no chão, de elegância simples que nos deixa à vontade como na casa de avós.

Cabe a mim apresentá-lo. Não sei se tolice, ou arrogância. Para apresentar Drummond, basta lê-lo.

Todavia, para não fugir à minha responsabilidade, eis aqui o que consegui mal traduzir da minha grande admiração por esse poeta da vida quotidiana.

Quem é o meu patrono?

Sujeito magro e longe de mim,
que como eu usa óculos
e no topo do coco cultiva uma calva.
Tão perto e tão longe,
mais longe que perto.

Quem é meu patrono?

Que não me conhece,
mas conhece os homens,
as mulheres conhece,
conhece essa terra.
Conhece Minas
pois dela perdeu-se.

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
E agora, José?

Quem é meu patrono?

Esse homem sereno que espera
na beira do mar de Copacabana.
Roubam-lhe os óculos dia após dia,
mas mesmo sem eles enxerga o mundo
com total perfeição.
Enxerga o mar nos olhos da amante,
enxerga pernas e braços,
bigodes e óculos perdidos no bonde.
Não sei se é José,
ou Raimundo.
Não sei se é apenas rima,
ou se seria solução.

Só sei que quando nasceu, um anjo torto,
desses que vivem na sombra,
disse-lhe: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.

Quem é meu patrono?

Que fala dos povos,
que fala dos Turcos que Turcos não são.

São Sírios oprimidos por Turcos cruéis.
Que são em Minas e vendem a seda
e a visão de Paris por uns poucos mil-réis.

Quem é meu patrono?

Que tece destinos,
que mistura destinos,
que vive destinos.
Que conta histórias de encontros
e descaminhos.

Que fala de João,
que amava Tereza,
que amava Raimundo,
que amava Maria,
que amava Joaquim,
qua amava Lili,
que não amava ninguém,
mas casou-se com J. Pinto Fernandes,
que não tinha, ainda, entrado na história.


Quem é meu patrono?

Que faz troça com a cidade
e com seus moradores.
Amontoados de carne e ossos
que não vivem, habitam.

As famílias se fecham
em células estanques.

O elevador sem ternura
expele, absorve
num ranger monótono
substância humana.

Entretanto há muito
se acabaram os homens.
Ficaram apenas
tristes moradores.

Quem é meu patrono?

Senão quem cria e inventa
novos termos e novas palavras.
Que inventa e cria novas definições
para palavras antigas.
Que junta palavras num baile
de infinita simplicidade.
Que chove sobre nós nossa lenta agonia.

A chuva me irritava. Até que um dia
descobri que maria é que chovia.

A chuva era maria. E cada pingo
de maria ensopava o meu domingo.

Eu era todo barro, sem verdura...
maria, chuvosíssima criatura!

Não me chovas, maria, mais que o justo
chuvisco de um momento, apenas susto.

Não me inundes de teu líquido plama,
não sejas tão aquático fantasma!

Eu lhe dizia --- em vão --- pois que maria
quanto mais eu rogava, mais chovia.

E chuveirando atroz em meu caminho,
o deixava banhado em triste vinho,

que não aquece, pois água de chuva
mosto é de cinza, não de boa uva.

Chuvadeira maria, chuvadonha,
chuvinhenta, chuvil, pluvimedoinha!

Eu lhe gritava: Pára! E ela, chovendo,
poços d'água gelada ia tecendo.

Choveu tanto maria em minha casa
que a correnteza forte criou asa

e um rio se formou, ou mar, não sei,
sei apenas que nele me afundei.

E quanto mais as ondas me levavam,
as fontes de maria mais chuvavam,

e era o mundo molhado e sovertido
sob aquele sinistro e atro chuvido.

Anti-petendam cânticos se ouviram.
Que nada! As cordas d'água mais deliram,

e maria, torneira desatada,
mais se dilata em sua chuvarada.

Os navio soçobram. Continentes
já submergem com todos os viventes,

e maria chovendo. Eis que a essa altura,
delida e fluida a humana enfibratura,

e a terra não sofrendo tal chuvência,
comoveu-se a Divina Providência,

e Deus, piedoso e enérgico, bradou,
Não chove mais, maria! --- e ela parou.


Quem é meu patrono?

Meu patrono não deseja fugir.
No máximo, quer voltar a Itabira.
Quem quer fugir é o Bandeira,
que brada com os pulmões que lhe restam:

Vou-me embora pra Passárgada,
pois lá sou amigo do rei.
Terei as mulheres que quero,
na cama que escolherei.

Meu patrono é gente.
É sincero, verdadeiro.
Mas não é o Fernando Pessoa
que crê que

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
que chegua a fingir que é dor
a dor que deveras sente.

Meu patrono é cantor e é amigo.
Meu patrono é poeta e é amigo.
Meu patrono é inventor e é amigo.

Meu patrono inventa, escreve e canta
a canção amiga.


Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.



Meu patrono é um sujeito magro
e de mim é muito distante.
Como eu, usa óculos e cultiva uma calva.
Tão perto e tão longe, mais longe que perto.

Meu patrono não me conhece e eu não o vejo.
Mas eu sinto como que me conhecesse.
Inventa e escreve palavras.
Quem sabe, um dia, eu também escreverei,
como ele, a poesia de uma vida inteira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário