SALTO SEM BARREIRAS
Celso Lopes - autor
Em casa quando a situação ficava tensa era fácil de saber: a Mãe se recolhia num canto do sofá da sala folheando sem parar as mesmas
páginas de um livro do Machado de Assis; o Pai, o Pai rondava de um lado pra outro, pensativo e silencioso; e eu, de violão em punho, acelerava as batidas,
tremulando acordes desconexos e desafinados...
enfim, criando um som alto e desigual, cujo objetivo era apenas atiçar o ambiente daquele espaço chamado “lar” com as minhas provocações. O violão parecia
dizer em alto e bom som: “- Ei, Dona
Nancy, você não engana a ninguém... largue esse maldito livro e grite as
suas mágoas para o seu marido,
vamos!...”. A Mãe tremia sob a minha música desconcertante;
era visível que resistia, o quanto
possível, em tocar fogo no
lar-doce-lar quando se tratava do Pai.
Pode-se dizer que o romance da “Dona Nancy” com o Pai, nascido de uma acirrada
disputa com uma tal de “Mariana”, esbarrava nas artimanhas criadas pelo mestre
da literatura. Se substituíssemos apenas os nomes, teríamos a história de ambos
recontada pela psicologia endiabrada do Bruxo
de Cosme Velho: “ O “Pai” quis sinceramente fugir,
mas já não pode, “Dona Nancy” como uma
serpente, foi se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num
espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado.
Vexame, susto, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória
delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí
foram ambos estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima das ervas
e pedregulhos (...)”
Para a Mãe, “Dona Nancy”, aquelas ausências acumuladas do Pai, que antes
lhe soavam como um sussurro carinhoso, agora explodiam.
Explodiam e apunhalavam. E, por certo,
doíam-lhe como
nunca!... Em casa quando a situação
ficava, assim, tensa, eu, sem saber o
porquê, gritava aqueles acordes no violão e disparava as minhas
farpas todas contra o Pai. Fel puro e desprezo, as minhas palavras. Nascia em
mim uma crueldade mesquinha que me levava a
provocar o Pai, a ironizar, a
trucidá-lo até, se preciso. Tantas
vezes, tanto fiz. E tanto fiz, tanto fiz, que naquele dia a Mãe também soltou todos os seus demônios contra ele.
“Dona Nancy” aliou-se a mim
disparando estilhaços por todos os lados, os seus golpes mais profundos. Palavras duras e cruéis as de uma esposa
para o seu homem. A Mãe esbravejava, parecendo tirar das páginas do livro aberto em suas mãos, todos os seus ais, as suas mágoas e as suas dores: “ - O Júnior tem razão!... Pra você,
somente os amigos, os amigos e as competições!” A Mãe falava em altos
brados e eu sorria por dentro. E
vitorioso, como se desafinasse a minha
voz acompanhando o violão, eu insistia sem trégua que ele queria mesmo era fugir da
gente; o que o Pai pretendia mesmo era livrar-se da sua mulher e do seu
filho!... Instigada por essa infâmia
carregada de inveja e rancor criados por mim, a Mãe pegou o jeito, soprou forte e avivou as brasas, e depois, depois entornou de vez a água fervente: “...Comigo? ...comigo apenas alguns minutos, sempre sem uma palavra de carinho e
sem tempo algum, só cobranças e cobranças!... Mandou lavar o meu uniforme? Viu minha chuteira?... Cadê meu tênis?...Eu?...Eu
que me lixasse nesse abandono, nessa sala que mais parece um mausoléu ... Antes, eu juro, antes eu tivesse deixado você
com a espevitada da Mariana, melhor seria!... À noite, muitas noites, quando eu mais te queria, me via ali, sozinha. Eu no meu quarto, o Júnior no
dele. Sozinhos, os dois. Sem homem, sem pai, sem palavra de amigo. Sempre
sozinha, eu. E você?...Você lá no bem-bom, comemorando
vitórias... E você? Você ali, na cama, dormindo, roncando de cansaço...Pior, um homem sem vida
pra mim!... Sem os desafios que eu queria!... E eu, a boba, a boboca, a vida inteira na platéia,
impotente, me remoendo, assistindo a
essa sua epopéia olímpica maldita. Maldito, você!”...
Naquela tarde, enquanto a Mãe espezinhava o seu homem, o Pai extravasava sua
raiva, fazendo desabar sob nossos pés ali na sala, todos os
seus troféus esportivos, as suas medalhas, as fotografias emolduradas,
os seus diplomas e os certificados... Eu, sem lhe dar a trégua exigida, acentuando o ritmo frenético do meu potente instrumento, fulminava-o com minhas setas certeiras e venenosas. Palavras cruéis as de um filho para um pai;
dardos pontiagudos que o feriam sem dó, como se partissem de um
atirador de facas que mirasse todos os
seus punhais no coração da vítima...Eu
repetia, repetia até que me faltasse o
fôlego, como numa competição em busca de recordes: “- Medalhas,
troféus, diplomas...grande merda, tudo isso!...Enquanto você vivia nessas
malditas competições esportivas, eu
ficava aqui, sozinho, sem pai, sem
amigo, sem ninguém.... Às favas, esse tal de Moses!...E você ganhou o quê, me
diga?...Nada!...Fez, fez e morreu na praia!”...
Em meio à guerra que lhe fazíamos, aquilo que durante anos fora
para ele os “louros da vitória” ,agora,
acomodavam-se de qualquer jeito em duas
caixas grandes de papelão. O Pai sem dizer uma palavra, como um autômato, pouco-a-pouco livrava as nossas
paredes do apartamento, as prateleiras e as duas estantes da sala, de tudo aquilo que o mundo esportivo lhe
dera; e odiando a Mãe e a mim, descia,
furiosamente, as escadarias do prédio pra depositar todas as suas conquistas no
suporte da lixeira, junto à calçada da rua. Foram raras oportunidades em que vimos o Pai numa
competição; quem o conhecia, no
entanto, quem conhecia aquele esportista
polivalente, de excelente compleição física, um atleta determinado e talentoso,
nascido no mesmo dia, mês e ano da lenda-viva do atletismo mundial, Edwin
Moses, garantia que dele, o Pai absorvera ingredientes imprescindíveis: a
velocidade, a força muscular e a
capacidade de treinar, treinar e
treinar... Hoje, ali, junto ao parapeito
da janela do sétimo andar, o olhar do
Pai nos evitava, mas mantinha sob vigília todos os seus troféus
amontoados lá embaixo, dentro das caixas
de papelão sobre o suporte da lixeira. Olhar não é bem o termo, eu jurava que
naquele momento, o Pai tinha visão de
águia, capaz de contemplar,
minuciosamente, cada um daqueles objetos. Abrisse a boca pra dizer, o Pai
repetiria exaustivo que a medalha de “natação” fora conquistada na raia
olímpica do Tênis Clube, quando fora
batido apenas pelo tri-campeão
Ruizinho Leme!... Abrisse a boca pra contar,
o Pai diria que a medalha, cromeada em ouro 18, estava lá embaixo, jogada,
disponível, descartada na lixeira da rua. Depois, depois diria que estava lá também a
medalha do “futebol”, quando emplacara
três a zero nos Pequeninos do Jóquei, e com isso, fora o campeão e artilheiro
daquele ano!... A Mãe lia pela milésima vez
o conto “ A Cartomante”, sempre
embevecida pela história de uma tal “Nancy”; e talvez, como a personagem, a Mãe também sofresse, remoendo-se em
lamentos pelo que dissera ao Pai. Por isso, dissimulando o tanto exato, a Mãe
seguia a tudo com os olhos pregados no livro, mas era visível, era nítido pelos
seus gestos, que estava a poucos instantes de se redimir. O
Pai, o Pai por certo também enxergou entre as
suas “honrarias”, lá embaixo,
o troféu Hélio Rubens, homenagem a uma referência do basquete brasileiro, que ele conquistara na partida final contra o
“dream team” do Colorado A.C.; O Pai não se cansava de nos dizer que virara o jogo com duas cestas-de-três,
o que lhe valera o reconhecimento de toda a arquibancada, inclusive dos
adversários!...O troféu, agora, também estava lá na lixeira, tal qual o do “handebol”,
que o Pai ganhara numa partida
memorável, segundo ele, contra o
Paineirão F.C., quando enfiou um, dois,
três.... quinze espetaculares arremessos
indefensáveis contra o goleiro Gilmar
Moreno!... Vez
ou outra, os olhos aquilinos do
Pai voltavam-se para o interior da
sala rastreando o vazio das paredes, a limpidez das estantes e a profundidade das
prateleiras... Por vezes, o Pai mirava
seus olhos reticentes endereçados a mim e à Mãe, mas em poucos instantes deixava-nos ao abandono, negligenciava-nos,
demonstrando que na lixeira da rua continuava a razão de ser de toda a sua
vida. Apoiado no beiral de uma das janelas da sala, e agora dedilhando com
ligeira suavidade as cordas do violão, eu pude ver quando os ruídos da rua
estamparam-lhe um sorriso no rosto. O menino, visto do alto, não tinha mais de 12 anos. Primeiro, o garoto
olhou para os lados, depois subiu os
olhos como quem tivesse algo a
conferir naquele edifício a sua frente. O Pai, mais visível ali na janela
principal, esquivou-se para a cortina, temeroso de algum confronto; pelo jeito o Pai queria apenas que alguém
ficasse com tudo aquilo, de maneira a
gostar, a amar, acarinhar.... E lá estava o
menino, ora puxando das caixas um troféu, ora uma fotografia, ora uma
medalha... Chegou até mesmo a apanhar o porta-retrato do Edwin Moses... Abandonou-o rápido, por certo desconhecia o famoso atleta mundial dos 400 metros com
barreiras... a lenda-viva!... O
menino, agora, retirava da caixa um quadro emoldurado. O Pai, com a voz
embargada, com os olhos marejados ali na sala, e sem se dar conta da minha
irritante melodia, como se ignorasse
a nossa presença ou nunca
a tivesse percebido, o Pai soletrava baixinho, de cor e emocionado, como
se acompanhasse a leitura em voz alta nos lábios do garoto: “ Conferimos
o certificado de Honra ao Mérito ao atleta Jairo Santos Silva por sua
participação nos 100 metros com barreiras...”
O olhar do garoto voltou-se,
outra vez, para o alto do edifício e,
prudente, o Pai recolheu-se para fora do beiral. Mas, fora mesmo a medalha, aquela cromeada
em ouro 18, a de natação, que roubara o interesse do menino. Num
relance, como quem subisse a um pódio
imaginário, vestiu-a sobre o pescoço, e alegre como nunca, lá foi ele
feliz, rua afora, com a medalha no peito, simulando braçadas numa raia olímpica
invisível... O sorriso do Pai, naquele
instante, inundava o ar. Respirando emoção e entretido até a medula, o
Pai só voltou a si diante da minha nova ofensiva, com as
batidas fortes, estridentes e cortantes
do violão, como a lhe dizer com o dedo em riste: “Vai ficar
aí parado feito estátua?...O estrago já
está feito, agora é consertar ou quebrar
de vez!... Esses prêmios estão mesmo no
lugar merecido: sabe onde?...no Lixo!...Lá embaixo, na Lixeira da rua!... Quem
sabe, agora, daqui pra frente, você arruma
um tempo pro seu filho e pra sua mulher, hein?” Depois disso, um longo e interminável
silêncio se interpôs entre nós ali na sala. Em gestos lentos, lentíssimos até,
o que o Pai fez foi matar dois coelhos de uma só vez: o seu filho e a
sua mulher, agora, teriam de amargar uma culpa pela vida inteira; carregar a
ferida exposta, eternamente, como uma chaga-viva!...Um revide de pura vingança
contra a nossa indiferença pelas suas
competições esportivas. E ali, bem ali
diante do nosso nariz, o Pai, como quem
fosse subir ao pódio sob flashes,
aplausos e chuva de pétalas... O Pai, do
alto de seus 1,80 metros ,
e com a jovialidade de cinco décadas, tentou ainda, em prantos, impedir que os homens da Limpeza
Pública brutalizassem suas conquistas, mas a voz soou-lhe débil, frágil, como
um sussurro desesperado... E naquele instante,
ainda que a Mãe tentasse um grito
impeditivo “ - Não,
Jairo, pelo amor de Deus, isso
não!”, e eu, emudecendo o
instrumento sob minhas mãos trêmulas,
eu lhe endereçasse uma palavra
profunda clamando por tradução: “Calma, Pai!...Calma, Pai!..Calma!”; o
Pai, como quem se preparasse para uma enterrada
definitiva no garrafão, ou para chutar um pênalti sem qualquer chance de
defesa para o goleiro, ou ainda, cortar
em diagonal a bola suplicante
da rede, ou quem sabe, num esforço sobre-humano, deixar à deriva todos os seus competidores na pista com barreiras, à la Moses... O Pai, silenciosamente, sem dizer uma palavra sequer,
sem tréguas ao cronômetro da vida, num ímpeto de agilidade e impulso, lançou-se
janela abaixo em busca de si mesmo;
precisamente, trinta e dois
metros e vinte e três centímetros, como atestaria a Perícia Técnica no
laudo do exame necroscópico.
Breve currículo:
O autor Celso Lopes é natural de Guará, interior do Estado de São Paulo e está radicado na capital paulista há muitos anos. Tem formação em Letras (USP/SP) e pós-graduação em Literatura brasileira (UNICID/SP). Atua na área de Comunicação e Marketing e participa de concursos literários nacionais. Livros publicado: Pedra na Contraluz (contos), Dei bandeira, hein? (mosaicos urbanos) e Retrato quase falado do meio do caminho (poesias).