terça-feira, 11 de março de 2014

Conto vencedor do VIII Concurso Contos do Tijuco


 SALTO SEM BARREIRAS

Celso Lopes - autor 


Em casa quando a situação ficava tensa era fácil de saber:  a Mãe se recolhia  num canto do sofá da sala folheando  sem parar  as mesmas  páginas de um livro do Machado de Assis; o Pai, o Pai  rondava  de um lado pra outro,  pensativo e silencioso; e  eu, de violão em punho, acelerava as batidas, tremulando acordes desconexos e  desafinados... enfim,  criando um  som alto e desigual, cujo objetivo era apenas  atiçar o ambiente daquele  espaço chamado “lar”  com as minhas provocações. O violão parecia dizer em alto e bom som:   “- Ei, Dona Nancy, você não engana a ninguém... largue esse maldito livro e grite as suas mágoas para o seu marido,  vamos!...”.   A Mãe tremia sob a minha música desconcertante; era visível que  resistia, o quanto possível,  em tocar fogo no lar-doce-lar  quando se tratava do Pai. Pode-se dizer que o romance da “Dona Nancy” com o Pai, nascido de uma acirrada disputa com uma tal de “Mariana”, esbarrava nas artimanhas criadas pelo mestre da literatura. Se substituíssemos apenas os nomes, teríamos a história de ambos recontada pela psicologia endiabrada do Bruxo de  Cosme Velho:  “ O “Pai” quis sinceramente fugir, mas já não pode, “Dona  Nancy” como uma serpente, foi se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, susto, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura;  mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima das ervas e pedregulhos  (...)”  
Para a Mãe, “Dona Nancy”, aquelas ausências acumuladas do Pai, que antes lhe soavam   como um sussurro carinhoso, agora explodiam. Explodiam  e apunhalavam. E, por certo, doíam-lhe como nunca!...  Em casa quando a situação ficava, assim,  tensa, eu, sem saber o porquê,  gritava aqueles  acordes no violão e disparava as minhas farpas todas contra o Pai. Fel puro e desprezo, as minhas palavras. Nascia em mim uma crueldade mesquinha que me levava a  provocar o Pai,  a ironizar, a trucidá-lo até, se preciso.  Tantas vezes, tanto fiz.  E tanto fiz,  tanto fiz,  que naquele dia a Mãe também  soltou todos  os seus demônios  contra ele.   “Dona Nancy” aliou-se a mim disparando estilhaços por todos os lados, os seus golpes mais profundos.   Palavras duras e cruéis as de uma esposa para o seu homem. A Mãe esbravejava,  parecendo tirar das páginas do  livro aberto em suas mãos,  todos os seus ais, as suas mágoas  e as suas dores:   “ - O Júnior tem razão!... Pra você, somente os amigos, os amigos  e  as competições!” A Mãe falava em altos brados e eu  sorria por dentro. E vitorioso,  como se desafinasse a minha voz  acompanhando o violão, eu insistia  sem trégua que ele queria mesmo era fugir da gente; o que o Pai pretendia mesmo era livrar-se da sua mulher e do seu filho!...  Instigada por essa infâmia carregada de inveja e rancor  criados  por mim,   a  Mãe pegou o jeito, soprou forte e  avivou as brasas, e  depois, depois  entornou de vez a água fervente:  “...Comigo? ...comigo apenas alguns  minutos, sempre sem uma palavra de  carinho e  sem tempo algum, só cobranças e  cobranças!...  Mandou lavar o meu uniforme? Viu  minha chuteira?... Cadê meu tênis?...Eu?...Eu que me lixasse nesse abandono, nessa sala que mais parece um mausoléu ...  Antes, eu juro, antes eu tivesse deixado você com a espevitada da Mariana, melhor seria!... À noite, muitas noites,  quando eu mais te queria, me via  ali, sozinha. Eu no meu quarto, o Júnior no dele. Sozinhos, os dois. Sem homem, sem pai, sem palavra de amigo. Sempre sozinha, eu.  E  você?...Você lá no bem-bom, comemorando vitórias...  E você? Você ali, na  cama, dormindo,  roncando de cansaço...Pior, um homem sem vida pra mim!... Sem os desafios que eu queria!... E eu,  a boba, a boboca, a vida inteira na platéia, impotente, me remoendo,  assistindo a essa sua epopéia olímpica maldita. Maldito, você!”... 
Naquela tarde, enquanto a Mãe espezinhava o seu homem,  o Pai extravasava  sua  raiva, fazendo desabar sob nossos pés ali na sala,  todos os  seus troféus esportivos, as suas medalhas, as fotografias emolduradas, os seus diplomas e os certificados... Eu, sem lhe dar a trégua exigida,  acentuando o ritmo frenético  do meu potente instrumento, fulminava-o  com minhas setas certeiras e venenosas.  Palavras cruéis as de um filho para um  pai;  dardos  pontiagudos  que o feriam sem dó, como se partissem de um atirador de facas que mirasse  todos os seus  punhais no coração da vítima...Eu repetia, repetia até que  me faltasse o fôlego, como numa competição em busca de recordes:   “- Medalhas, troféus, diplomas...grande merda, tudo isso!...Enquanto você vivia nessas malditas competições esportivas,  eu ficava  aqui, sozinho, sem pai, sem amigo, sem ninguém.... Às favas, esse tal de Moses!...E você ganhou o quê, me diga?...Nada!...Fez, fez e morreu na praia!”...
Em meio à guerra que lhe fazíamos, aquilo que durante anos fora para ele os “louros da vitória” ,agora, acomodavam-se de qualquer jeito em  duas caixas grandes de papelão. O Pai sem dizer uma palavra, como um autômato,  pouco-a-pouco livrava  as nossas  paredes do apartamento, as prateleiras e as duas estantes da sala,  de tudo aquilo que o mundo esportivo lhe dera; e  odiando a Mãe e a mim, descia, furiosamente, as escadarias do prédio pra depositar todas as suas conquistas no suporte da lixeira, junto à calçada da rua. Foram raras oportunidades em que vimos o Pai numa competição;  quem o conhecia, no entanto,  quem conhecia aquele esportista polivalente, de excelente compleição física, um atleta determinado e talentoso, nascido no mesmo dia, mês e ano da lenda-viva do atletismo mundial, Edwin Moses, garantia que dele, o Pai absorvera ingredientes imprescindíveis: a velocidade, a força muscular  e a capacidade de treinar,  treinar e treinar... Hoje,  ali, junto ao parapeito da janela do sétimo andar,  o olhar do Pai nos evitava, mas mantinha sob vigília todos os seus troféus amontoados lá embaixo, dentro das  caixas de papelão sobre o suporte da lixeira. Olhar não é bem o termo, eu jurava que naquele momento, o  Pai tinha visão de águia, capaz de  contemplar, minuciosamente, cada um daqueles objetos. Abrisse a boca pra dizer, o Pai repetiria exaustivo que a medalha de “natação” fora conquistada na raia olímpica do Tênis Clube, quando fora  batido apenas pelo  tri-campeão Ruizinho Leme!... Abrisse a boca pra contar,  o Pai diria que a medalha, cromeada em ouro 18, estava lá embaixo, jogada,  disponível, descartada na lixeira da rua.  Depois, depois diria que estava lá também a medalha  do “futebol”, quando emplacara três a zero nos Pequeninos do Jóquei,  e com isso, fora o campeão e artilheiro daquele ano!...  A Mãe lia pela  milésima vez  o conto “ A Cartomante”, sempre  embevecida pela história de uma tal “Nancy”; e talvez,  como a personagem,  a Mãe também sofresse, remoendo-se em lamentos pelo que dissera ao Pai. Por isso, dissimulando o tanto exato, a Mãe seguia a tudo com os olhos pregados no livro, mas era visível, era nítido pelos seus gestos, que estava  a   poucos instantes de se redimir.  O  Pai,  o Pai  por certo também enxergou  entre as   suas “honrarias”, lá embaixo,  o  troféu Hélio Rubens, homenagem a uma referência do  basquete brasileiro,  que ele conquistara na partida final contra o “dream team” do Colorado A.C.;  O Pai não se cansava de nos dizer  que virara o jogo com duas cestas-de-três, o que lhe valera o reconhecimento de toda a arquibancada, inclusive dos adversários!...O troféu, agora, também estava lá na lixeira, tal qual o do “handebol”, que  o Pai ganhara numa partida memorável, segundo ele,  contra o Paineirão F.C., quando  enfiou um, dois, três.... quinze  espetaculares arremessos indefensáveis  contra o goleiro Gilmar Moreno!...  Vez ou outra, os olhos aquilinos do Pai voltavam-se  para o interior da sala  rastreando  o vazio das paredes, a limpidez  das estantes e a profundidade das prateleiras... Por vezes,  o Pai  mirava  seus olhos  reticentes endereçados  a mim e à Mãe, mas em poucos instantes  deixava-nos ao abandono, negligenciava-nos, demonstrando que na lixeira da rua continuava a razão de ser de toda a sua vida. Apoiado no beiral de uma das janelas da sala, e agora dedilhando com ligeira suavidade as cordas do violão, eu pude ver quando os  ruídos da rua  estamparam-lhe um sorriso no rosto. O menino, visto do alto,  não tinha mais de 12 anos. Primeiro, o garoto olhou para os lados,  depois subiu os olhos como quem tivesse algo a  conferir  naquele  edifício a sua  frente. O Pai, mais visível ali na janela principal,  esquivou-se  para a cortina,  temeroso de algum confronto;  pelo jeito o Pai queria apenas que alguém ficasse com tudo aquilo,  de maneira a gostar, a amar,  acarinhar....  E lá estava o  menino, ora puxando das caixas um troféu, ora uma fotografia, ora uma medalha... Chegou até mesmo a apanhar o porta-retrato do Edwin Moses... Abandonou-o rápido, por certo  desconhecia o famoso atleta mundial dos 400 metros com barreiras... a lenda-viva!... O menino, agora, retirava da caixa  um  quadro emoldurado. O Pai, com a voz embargada, com os olhos marejados ali na sala, e sem se dar conta da minha irritante  melodia, como se ignorasse a  nossa presença  ou nunca  a tivesse percebido, o Pai soletrava baixinho, de cor e emocionado, como se acompanhasse a leitura em voz alta nos lábios do garoto:  “ Conferimos o certificado de Honra ao Mérito ao atleta Jairo Santos Silva por sua participação nos 100 metros com barreiras...”   O olhar do garoto voltou-se, outra vez,  para o alto do edifício e, prudente, o Pai recolheu-se para fora do beiral.  Mas, fora mesmo a medalha, aquela cromeada em ouro 18, a de natação, que roubara o interesse do menino. Num relance, como quem subisse a um pódio imaginário, vestiu-a sobre o pescoço, e alegre como nunca, lá foi ele feliz, rua afora, com a medalha no peito, simulando braçadas numa raia olímpica invisível...   O sorriso do Pai, naquele instante,  inundava o ar.  Respirando emoção e entretido até a medula, o Pai só voltou a si  diante da minha nova ofensiva,  com  as batidas fortes,  estridentes e cortantes do violão,  como  a lhe dizer com o dedo em riste: “Vai ficar aí parado feito estátua?...O estrago  já está feito, agora  é consertar ou quebrar de vez!... Esses prêmios estão mesmo  no lugar merecido: sabe onde?...no Lixo!...Lá embaixo, na Lixeira da rua!... Quem sabe, agora,  daqui pra frente, você  arruma  um tempo pro seu filho e pra sua mulher, hein?”    Depois disso, um longo e interminável silêncio se interpôs entre nós ali na sala. Em gestos lentos, lentíssimos até, o que o Pai fez foi  matar  dois coelhos de uma só vez: o seu filho e a sua mulher, agora, teriam de amargar uma culpa pela vida inteira; carregar a ferida exposta, eternamente, como uma chaga-viva!...Um revide de pura vingança contra a nossa indiferença pelas  suas competições esportivas.  E ali, bem ali diante do nosso nariz, o  Pai, como quem fosse  subir ao pódio sob flashes, aplausos  e chuva de pétalas... O Pai, do alto de seus 1,80 metros, e com a jovialidade de cinco décadas, tentou ainda,  em prantos, impedir que os homens da Limpeza Pública brutalizassem suas conquistas, mas a voz soou-lhe débil, frágil, como um sussurro desesperado... E naquele instante,  ainda que a Mãe  tentasse  um grito  impeditivo    “ - Não, Jairo,  pelo amor de Deus, isso não!”, e eu,  emudecendo o instrumento sob minhas mãos trêmulas,   eu lhe endereçasse  uma palavra profunda clamando por tradução: “Calma, Pai!...Calma, Pai!..Calma!”; o Pai, como quem se preparasse para uma enterrada definitiva no garrafão, ou para chutar um pênalti sem qualquer chance de defesa para o goleiro, ou ainda, cortar em diagonal a bola suplicante da rede,  ou quem sabe,  num esforço sobre-humano, deixar à deriva todos os  seus competidores na pista com barreiras, à la Moses... O Pai, silenciosamente, sem dizer uma palavra sequer, sem tréguas ao cronômetro da vida, num ímpeto de agilidade e impulso,  lançou-se  janela abaixo em busca de si mesmo;  precisamente, trinta e dois  metros e vinte e três centímetros, como atestaria a Perícia Técnica no laudo do  exame necroscópico. 




Breve currículo:
O autor Celso Lopes é  natural de Guará, interior do Estado de São Paulo e está radicado na capital paulista há muitos anos. Tem formação em Letras (USP/SP) e pós-graduação em Literatura brasileira (UNICID/SP).  Atua na área de Comunicação e Marketing e  participa de concursos literários nacionais. Livros publicado: Pedra na Contraluz (contos), Dei bandeira, hein? (mosaicos urbanos)  e Retrato quase falado do meio do caminho (poesias).
  


segunda-feira, 10 de março de 2014

Resultado - VIII Concurso Contos do Tijuco - 2013

.                               A L A M I     
         Academia de Letras Artes e Música de Ituiutaba
      
                VIII CONCURSO CONTOS DO TIJUCO

RESULTADO:

CONTO PREMIADO
Salto sem barreiras –
Autor – Celso Antônio Lopes da Silva –
Guará – SP -

Contos selecionados – sem ordem de classificação

- Anjo
Autor – André Telucazu Kondo –
Santo André – SP –

- O que houve com a televisão?
Autor – Marcelo Gomes Jorge Féres
Niterói – R. J. –

- Mais uma vítima da lenda urbana
Autor – Leandro Luiz
São Paulo – SP –

- 50 velas amarelas
Autor – Luiz Alberto dos Santos
Coruripe – AL –

- O professor
Autor – Darcy Ribeiro da cruz
Rio de Janeiro – RJ –

- Encontro no Bistrô
Autor – Danilo Silvio Aurich
Porto Alegre –RS –

- Calma que o petróleo é nosso
Autor – Vitor Coelho Camargo Melo
Duque de Caxias – RJ –

- A última visita
Autor – Rafael de Freitas Silva
Queimados – RJ –

- Onde morava João
Autor – Eduardo Chaves Laurent
Porto Alegre – RS
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