sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Agesípolis Fernandes Maciel – 1913-2001 - imortalizado pela sua literatura –

 
      







              Negra Joana
– do livro “Falando de Saudade” – 1.993


Baixadão de terra massapé de coloração roxa, quase preta, nas enseadas dos córregos e alagados, em razão das grandes cheias do Rio Paranaíba, cenário merecedor de um capitulo à parte.
Os córregos, verdadeiros ribeirões, alguns de pequeno curso entre as nascentes e os desaguadouros, outros mais extensos, mas todos oriundos de cabeceiras em plena mata bruta, devastada.
À princípio, pequenos veios d’água, quase secos nas estiagens prolongadas, avolumando-se com as enxurradas, crescendo com o tempo, na medida da destruição da mataria.
Esta quase se acabou, abatida pelo machado, em grandes derrubadas e pelo fogo inclemente, atirado e atiçado pelo caboclo, inimigo implacável das árvores e toda e qualquer vegetação natural!
O sertanejo tinha a mania do fogo. Ignorante, julgava que fortalecia e dava vigor à terra. E encontrar um capim vedado, mesmo simples montículo de resto de cultura, a chamada binga ou palito de fósforo entrava em ação. Dali, o fogo se espalhava, queimando, destruindo em fúria louca tudo por onde passava, até ser barrado por chuva providencial ou vertente d’água.
Longos dias e longas noites era aquele vermelhão no céu!
Não havia aceiro ou estrada que o barrasse. Parte do roçado era plantada em milho na roça de toucos, em que a brota era cortada à enxada, às vezes,  simples poda a foice, para desabafar o milho. E o cereal vinha viçoso; com sessenta dias estava de pendão, fecundando as bonequinhas, prenúncio de espiga grande e coberta de grãos de ponta a ponta!
Às vezes, a roça era colhida. Outras, os porcos eram soltos e se encarregavam da colheita: - da roça para o bucho. E o capado gordo, grande riqueza da região naquele tempo, seguia para os abatedouros.
Mas, o que pretendo narrar, em lances leves, descrevendo a natureza inóspita, são os acontecimentos da época, cenas de que o local foi palco, a vida dura do caboclo, enfrentando cobras venenosas, as brigas por qualquer desentendimento, as tocaias e, sobretudo, o maior inimigo do entrante: - a malária.
Esta, mais que a peixeira, a garrucha de chumbo de carrego pela boca, como a espingarda pica pau, mais tarde o revolver, de que ninguém se apeava, ostentando-os na cinta, em sinal de que era cabra macho e não levava desaforo para casa, - a malária dizimou mais! Havia a diária e a terçã, com surtos de febre diários e intermitentes. Uma legião de homens, mulheres e crianças sucumbiu-se, sem deixar nome ou vestígio de sua fama de trabalhadores de sol a sol, vivendo em ranchos cobertos de folhas de coqueiros, com paredes de pau a pique, algumas barreadas, a maioria sem nenhum revestimento! Alimentavam-se bem e fartamente de carnes de caças, peixes, farinha, palmitos e feijão. À princípio os mortos eram sepultados em cemitérios improvisados, em plena mata. Depois, por volta de 1920, pela iniciativa de um benemérito fazendeiro, Joaquim Gonçalves de Azevedo, de saudosa memória, foi construído o cemitério do “Gafanhoto”, no local denominado “Serrote”, em terras de sua propriedade.
Morrendo muita gente, o transporte dos defuntos era feito em carros de bois, toldados. As distancias a percorrer iam até vinte, trinta quilômetros e mais. No tempo de maior mortandade, o carro trazia dois, três cadáveres de cada vez. Os caixões vazios voltavam a abrigar outros.
Certa feita perguntaram a um carreiro: - Quantos vieram nesta viagem? – Hoje só três.
- Mas morreram simultaneamente?
-Não. Às vezes morre um, tem outro muito mal, a gente fica assuntando... Manda ver na vizinhança se vai ter mais algum, então a gente espera. Amanhã, temos mais serviço!
- Então morre tanta gente assim?
- Se morre!... É um Deus nos acuda!
Quando o doente ficava ruim, algum em coma, sabia-se que estava vivo porque respirava, balbuciando palavras sem nexo, quase inaudíveis, sabia-se que o desenlace iria demorar.
Nessas ocasiões mandavam chamar Negra Joana, benzedeira, ótima colhedora de anjinhos e melhor ainda para ajudar o moribundo descansar.
Tia Joana chegava, era um alívio. Todos saíam do quarto.
Era o preceito.
Se se tratasse de parto, ela fazia umas mesuras. Colocava o chapéu do pai sobre a barriga da parturiente. Trazia um  feixe de chaves já enferrujadas, gastas pelo uso e simulava abrir o fecho que impedia a criança de nascer. Quase sempre dava bom resultado.
Só atendia a chamados para ajudar enfermo morrer, quando estivesse muito mal e não encontrava meios de dar o último suspiro. Diziam que a fraqueza era tanta, tanta, que o doente não tinha forças para morrer. Ficava vendo fantasmas, de olhos esbugalhados; semicerrados, calmo, quando o enfermo era de bom procedimento. Mas morrer mesmo, que seria bom, nada!
Davam muito trabalho à tia Joana!
- Pode deixá, meu fio, que já, já ele ta aliviado e discansa na mão de Deus!
Todos saiam. O silêncio era profundo, em sinal de respeito pelo serviço.
O cara não pressentia nada. Olhos parados no infinito, às vezes balbuciava.
Tia Joana fazia gestos característicos, punha o cachimbo de lado da boca e entrava em ação.
- Morre, meu irmão. Vancê é filiz de morrê ansim. Vai para a glória de Deus.
O enfermo continuava alheio, indiferente a tudo!
Quando se tratasse de mulher grávida, quanto maior o feto, mais demorado o desenlace. Também pudera eram dois a ajudar a morrer. Um queria, já estava disposto, o outro fincava o pé: - Não vou, não quero ir!
Era muito serviço a um só tempo para tia Joana! Esgotado todos os recursos de persuasão, ela era forçada a usar de meios mais convincentes. Ajoelhava sobre a barriga do moribundo e comprimia. O fôlego ia ficando curto, se distanciava devagar, devagar, até o companheiro entregar os pontos.
Tia Joana era famosa. E com justificada razão!  ###

Agesípolis Fernandes Maciel – 1913-2001 - imortalizado pela sua literatura –
– Nascido na cidade de Uberaba - MG, em 14 de julho de 1913. Professor. Mudou-se para a cidade de Ituiutaba – MG onde foi Diretor do Colégio Estadual de Ituiutaba, presidente do Sindicato Rural, diretor da Associação Comercial e Industrial de Ituiutaba, Vereador. Recebeu o título de Cidadão Honorário de Ituiutaba por seu trabalho e pela dedicação e amor à comunidade.

   

sábado, 1 de fevereiro de 2014

enquanto esperamos o resultado do VIII Concurso...

 

A Tia Miséria (recolhido blog -adversus omnes)

Havia no princípio do mundo uma velhinha muito pobre e muito infeliz: era conhecida pela Tia Miséria. Só possuía uma casinha arruinada e uma pereira defronte da porta. Tudo sofria com paciência e resignação, mas só uma coisa não desculpava, nem perdoava: que os garotos subissem à pereira e lhe comessem as pêras. Era capaz de dá-las todas sem provar uma, mas indignava-se contra os que lhas roubavam.

Uma noite bateu-lhe à porta um pobrezinho; correu a abri-la e deu ao pobrezinho a migalha de pão que reservava para si. No dia seguinte despediu-se o pobre e disse-lhe que pedisse o que quisesse.

Só peço que as pessoas que subirem à minha pereira não possam descer sem o meu consentimento – respondeu a velhinha.

- Assim será – respondeu o mendigo.

No outro dia, quando saiu à rua, encontrou três garotos em cima da pereira.

- Ó Tia Miséria, perdoe-nos pelo amor de Deus! Tire-nos daqui, não podemos descer.

- Ah! Pois vocês diziam que não eram os ladrões das minhas pêras! Por esta vez, vá; Se lá voltarem hão-de ficar aí muitos anos.

E os garotos desceram e não mais voltaram à pereira.

Um dia de manhã, entrou-lhe em casa uma mulher de horrendo aspecto, vestida de negro e armada de foice, com as asas negras nos ombros e nos pés.

- O que me quer? - Perguntou a Miséria a tremer.

- Sou a Morte: venho buscar-te.

- Já? Pois nem ao menos me dá um ano de espera?

- Não pode ser - respondeu a Morte.

- Faça-me ao menos um favor: suba à minha pereira e colha-me a última pêra que me resta. Quero comê-la, visto que é a última.

A Morte subiu à pereira, colheu a pêra, mas não pôde descer. Pôs-se a chamar a velhinha. Esta respondeu: “Tem paciência, aí ficarás para todos os séculos. És má, tens feito muitas desgraças, roubando muitos pais aos seus filhos pequeninos...”

E a Morte ficou em cima da pereira.

Passados dias tinha a velhinha em frente da sua porta um exército, composto de padres que se queixavam de que não havia enterros, de escrivães que se lastimavam de não ter inventários, de delegados que se doíam de não fazer promoções orfanológicas, de juízes que se queixavam de não receber emolumentos das reuniões dos conselhos de família, das presidências nos actos de licitações e das sentenças em demarcações, enfim, de todos aqueles indivíduos que vivem da morte do próximo. Todos pediam à velhinha que autorizasse a Morte a descer da pereira, mas a velhinha respondia: “ Não quero, não quero e não quero”.

Falou então a Morte do alto da pereira e fez com a velhinha um contrato: poupar-lhe a vida enquanto o mundo fosse mundo. A velhinha consentiu e a Morte desceu. Por isso enquanto o mundo for mundo a Miséria existirá sobre a Terra.

Conto tradicional português, recolhido por Ataíde Oliveira