o olho da rua
Lygia
Roncel
O
céu estava claro naquela manhã como jamais esteve nem nunca mais estaria. O céu
era como se fosse meu coração, brilhando, pulsando, brilhando, pulsando, uma
bola de fogo que reluzia ao respirar feito os olhos de um bicho que rosna, mudo
e trêmulo, feroz e apavorado. E o domingo ficava tão claro, tão colorido, tão
reluzente, como vitrais de igreja com a luz atravessada.
O
céu ardia e meu coração, meu céu, meu olho ardiam junto, a dor de um corpo dois
segundos antes de ser incinerado ou depois de se atirar na linha do trem.
Angústia, angústia, angústia, as nuvens e as horas e as aves gritavam angústia
e somente eu escutava, porque o mundo é surdo-mudo e corre assustado como se
alguém o perseguisse, mas dá sempre voltas no mesmo lugar. O mundo está sempre
como que parado, à espera.
Eu
iria embora. Eu iria, embora quisesse ficar. Quisesse ficar ali parado como o
mundo, à espera. E quando fechava os olhos e quando os abria, no fechar-abrir
comum aos olhos, eu queria sugar o universo todo para dentro, queria cada
pedaço daquela manhã, agora desmantelada, encaixado um no outro, pendurado
feito um quadro nas paredes de dentro da minha cabeça, para poder olhar para
sempre e para sempre poder sorrir. Sorrir, coisa que só às vezes acontece.
Porque
o céu estava claro como nunca e a rua se esticava até onde eu ainda podia ver,
até onde o ônibus verde e branco dobrava para a esquerda, até a linha
pontilhada entre o que é real e o que é sonho. Minha mãe ali dentro de um
abraço meu parecia não querer sair, parecia morta, parecia parte de mim, um
braço que me agarrava com a força de mil leões. No rosto da minha mãe: mais
lágrimas do que pele, como se lhe dessem a notícia da minha morte comigo ali
presente, e ela já sentisse agora toda a saudade que viria só depois. Angústia,
angústia era um som que eu ouvia, era uma prece que alguém orava em meu nome, e
repetia, repetia.
E
aquele sol, aquele sal que escorria, aquele mar de adeus que, agitado e quente,
eu soluçava no ombro da minha mãe. Aquela rua que era nossa, sempre foi; aquele
sol nascendo detrás do muro, muito redondo e muito amarelo como o toldo de um
circo que nos cobria, meninos, no caminho da escola. Aquele vento que vazava
pelos dedos espalmados, aquele vento que tinha o cheiro de casa, o cheiro da
rua, o cheiro da minha mãe. Aquele vento puro e veloz que me empurrava para a
bola, que me empurrava para a pipa, que me empurrava para longe com a
bicicleta. E eu ria, ria, ria, o vento me fazia rir e eu o engolia.
Naquele
dia, porém, não ventava: nada se movia nem ria nem vibrava. As imagens é que
cavalgavam sem vento pela abóbada do meu olho, e nadavam – sacudindo os braços
e afundando cada vez mais – nos pingos d’água que eu chovia e eram só uma linha
vertical que partia dos meus olhos e ia também até o fim daquela rua, dobrava a
esquina e secava. Quem dera, quem dera, eu suspirava um ‘quem dera’. E queria
ser agora um menino que o vento empurra, um menino que o sol mancha, um menino
que a mãe beija. Menino que ri, abre os braços e ri de novo, livre porque
desconhece o não ser livre.
As
casas todas brilhavam em suas cores fosforescentes, em seus amarelos, verdes,
azuis-claros, cores-de-rosa, e seus telhados cor de carne formavam um outro
céu, abaixo do azul, onde as maritacas pudessem não voar, pudessem querer
ficar, ficar, ir ficando. A manhã, naquela rua, tinha cheiro de bolinho de
chuva, de biscoito de manteiga, de mingau. Tinha um cheiro de árvore molhada,
um cheiro verde de planta, cheiro doce de terra. Tinha um cheiro de nós quando
pequenos. As manhãs eram todas assim, como aquela, exceto pela claridade
monstruosa que embrulhava a vizinhança como se o domingo fosse mágico e Deus
estivesse para chegar.
E
havia um som feito de bocejos, um som feito de vapor de bule, de beijo
estalando, de pão estalando, de maritacas sem voo, proseando no telhado. Havia
esse som de roupa no varal, para lá e para cá; esse som vagaroso de besouro
pousando, de rádio dando bom-dia, de dia trôpego que procura a chave para abrir
a porta e então entrar. Era meu som favorito, o som do dia vindo, o som dos
passos leves do dia, que era como o das patas de um animalzinho pisando a
madeira do assoalho. Era um som mais ou menos assim, de silêncio camuflado.
Silêncio de pombas dando voltas no céu, silêncio de olho olhando pombas darem
voltas como se fossem planetas distantes em torno dele, sol.
Os
dias ali, os dias bons, tinham gosto de jabuticaba. Vinham todos do pomar, em
cestos de palha. Minha mãe é que vinha com eles, trazê-los, anunciá-los, com
uma euforia que até pareciam dias especiais. Eram apenas dias, iguais no começo
e no final, começando com um beijo e terminando com um beijo. Minha mãe, que
agora se desesperava no meio do abraço, minha mãe, que agora gemia, beijava,
morria, de um modo descoordenado e desnorteado e desesperado de mãe sem filho.
E essa despedida tinha um gosto de dia ruim, gosto vermelho de sangue.
Sangue
era a cor dos olhos da mulher que então me olhava, espremidos de dor e de
surpresa e de pesadelo, os olhos que se apertavam, morrendo, mas que antes me
olhavam, olhavam. Era sangue aquilo que encharcava os olhos que me olhavam, o
pescoço, o chão, a pia, era sangue que pintava a minha fúria. E também as
minhas mãos, e também o objeto pontiagudo que entrou e saiu cinco, seis, sete,
oito vezes do corpo minúsculo daquela mulher, que era a minha. E então eu
parei, e então eu estava viúvo, e então a camisa era da cor sangue igual aos
olhos da minha mulher. De um jeito que me assustou, de tão veloz.
Abri
os olhos e lá estava minha mãe, naquele mesmo instante de soluços de outrora, e
o céu brilhando, brilhando. Minha mãe arrancada de mim como um braço – e agora
abraçar era nosso passado. Minha mãe, coitada, aquela estátua de gesso se
curvando diante de mim, se ajoelhando, desabando, como uma casa que é demolida
e passa a ser terreno baldio. Antes de me abaixar para entrar no carro, olhei
pela última vez a rua, a rua me olhou, a calçada dourada de sol e poeira e
pavor. Veio o cheiro de bolinho de chuva e eu quase virei pó, trucidado por uma
saudade mais feroz do que a minha fúria. A sirene tinha cor e gosto de sangue.
E gritou, gritou, assustou as maritacas, arregalou os olhos da rua.
O
carro virou à esquerda no fim da rua, caiu no abismo que havia ali depois do
semáforo, no fim do quarteirão daquele dia sem vento, levando consigo uma
escuridão que aquela manhã seria incapaz de abraçar com seus braços feitos de
luz, braços feitos de cores, braços que eram abraços de quem nunca mais vai se
ver. E que então me largavam. E me empurravam para um destino que nem cor tinha,
nem vento ou perdão. Eu olhei a vida, enxerguei seu sentido em uma profundeza
que só foi possível com a claridade do dia. Os olhos da minha mãe, que eram
verdes como os meus, escureceram junto comigo, e nenhum outro dia, entre os que
se seguiram, conseguiu trazer de volta o verde que se perdeu, como uma folha
que cai e voa para onde os olhos não podem mais ver. Voa para fora do mundo.*