Negra Joana
– do livro “Falando de Saudade” –
1.993
Baixadão de terra massapé de
coloração roxa, quase preta, nas enseadas dos córregos e alagados, em razão das
grandes cheias do Rio Paranaíba, cenário merecedor de um capitulo à parte.
Os córregos, verdadeiros
ribeirões, alguns de pequeno curso entre as nascentes e os desaguadouros,
outros mais extensos, mas todos oriundos de cabeceiras em plena mata bruta,
devastada.
À princípio, pequenos veios d’água,
quase secos nas estiagens prolongadas, avolumando-se com as enxurradas,
crescendo com o tempo, na medida da destruição da mataria.
Esta quase se acabou, abatida
pelo machado, em grandes derrubadas e pelo fogo inclemente, atirado e atiçado
pelo caboclo, inimigo implacável das árvores e toda e qualquer vegetação
natural!
O sertanejo tinha a mania do
fogo. Ignorante, julgava que fortalecia e dava vigor à terra. E encontrar um
capim vedado, mesmo simples montículo de resto de cultura, a chamada binga ou
palito de fósforo entrava em ação. Dali, o fogo se espalhava, queimando,
destruindo em fúria louca tudo por onde passava, até ser barrado por chuva
providencial ou vertente d’água.
Longos dias e longas noites era
aquele vermelhão no céu!
Não havia aceiro ou estrada que o
barrasse. Parte do roçado era plantada em milho na roça de toucos, em que a
brota era cortada à enxada, às vezes,
simples poda a foice, para desabafar o milho. E o cereal vinha viçoso;
com sessenta dias estava de pendão, fecundando as bonequinhas, prenúncio de
espiga grande e coberta de grãos de ponta a ponta!
Às vezes, a roça era colhida.
Outras, os porcos eram soltos e se encarregavam da colheita: - da roça para o
bucho. E o capado gordo, grande riqueza da região naquele tempo, seguia para os
abatedouros.
Mas, o que pretendo narrar, em
lances leves, descrevendo a natureza inóspita, são os acontecimentos da época,
cenas de que o local foi palco, a vida dura do caboclo, enfrentando cobras
venenosas, as brigas por qualquer desentendimento, as tocaias e, sobretudo, o
maior inimigo do entrante: - a malária.
Esta, mais que a peixeira, a
garrucha de chumbo de carrego pela boca, como a espingarda pica pau, mais tarde
o revolver, de que ninguém se apeava, ostentando-os na cinta, em sinal de que
era cabra macho e não levava desaforo para casa, - a malária dizimou mais!
Havia a diária e a terçã, com surtos de febre diários e intermitentes. Uma
legião de homens, mulheres e crianças sucumbiu-se, sem deixar nome ou vestígio
de sua fama de trabalhadores de sol a sol, vivendo em ranchos cobertos de
folhas de coqueiros, com paredes de pau a pique, algumas barreadas, a maioria
sem nenhum revestimento! Alimentavam-se bem e fartamente de carnes de caças,
peixes, farinha, palmitos e feijão. À princípio os mortos eram sepultados em
cemitérios improvisados, em plena mata. Depois, por volta de 1920, pela
iniciativa de um benemérito fazendeiro, Joaquim Gonçalves de Azevedo, de
saudosa memória, foi construído o cemitério do “Gafanhoto”, no local denominado
“Serrote”, em terras de sua propriedade.
Morrendo muita gente, o
transporte dos defuntos era feito em carros de bois, toldados. As distancias a
percorrer iam até vinte, trinta quilômetros e mais. No tempo de maior
mortandade, o carro trazia dois, três cadáveres de cada vez. Os caixões vazios
voltavam a abrigar outros.
Certa feita perguntaram a um
carreiro: - Quantos vieram nesta viagem? – Hoje só três.
- Mas morreram simultaneamente?
-Não. Às vezes morre um, tem
outro muito mal, a gente fica assuntando... Manda ver na vizinhança se vai ter
mais algum, então a gente espera. Amanhã, temos mais serviço!
- Então morre tanta gente assim?
- Se morre!... É um Deus nos
acuda!
Quando o doente ficava ruim,
algum em coma, sabia-se que estava vivo porque respirava, balbuciando palavras
sem nexo, quase inaudíveis, sabia-se que o desenlace iria demorar.
Nessas ocasiões mandavam chamar
Negra Joana, benzedeira, ótima colhedora de anjinhos e melhor ainda para ajudar
o moribundo descansar.
Tia Joana chegava, era um alívio.
Todos saíam do quarto.
Era o preceito.
Se se tratasse de parto, ela
fazia umas mesuras. Colocava o chapéu do pai sobre a barriga da parturiente.
Trazia um feixe de chaves já
enferrujadas, gastas pelo uso e simulava abrir o fecho que impedia a criança de
nascer. Quase sempre dava bom resultado.
Só atendia a chamados para ajudar
enfermo morrer, quando estivesse muito mal e não encontrava meios de dar o
último suspiro. Diziam que a fraqueza era tanta, tanta, que o doente não tinha
forças para morrer. Ficava vendo fantasmas, de olhos esbugalhados;
semicerrados, calmo, quando o enfermo era de bom procedimento. Mas morrer
mesmo, que seria bom, nada!
Davam muito trabalho à tia Joana!
- Pode deixá, meu fio, que já, já
ele ta aliviado e discansa na mão de Deus!
Todos saiam. O silêncio era
profundo, em sinal de respeito pelo serviço.
O cara não pressentia nada. Olhos
parados no infinito, às vezes balbuciava.
Tia Joana fazia gestos
característicos, punha o cachimbo de lado da boca e entrava em ação.
- Morre, meu irmão. Vancê é filiz
de morrê ansim. Vai para a glória de Deus.
O enfermo continuava alheio,
indiferente a tudo!
Quando se tratasse de mulher
grávida, quanto maior o feto, mais demorado o desenlace. Também pudera eram
dois a ajudar a morrer. Um queria, já estava disposto, o outro fincava o pé: -
Não vou, não quero ir!
Era muito serviço a um só tempo
para tia Joana! Esgotado todos os recursos de persuasão, ela era forçada a usar
de meios mais convincentes. Ajoelhava sobre a barriga do moribundo e comprimia.
O fôlego ia ficando curto, se distanciava devagar, devagar, até o companheiro
entregar os pontos.
Tia Joana era famosa. E com justificada
razão! ###
Agesípolis Fernandes Maciel –
1913-2001 - imortalizado pela sua literatura –
– Nascido na cidade de Uberaba -
MG, em 14 de julho de 1913. Professor. Mudou-se para a cidade de Ituiutaba – MG
onde foi Diretor do Colégio Estadual de Ituiutaba, presidente do Sindicato
Rural, diretor da Associação Comercial e Industrial de Ituiutaba, Vereador.
Recebeu o título de Cidadão Honorário de Ituiutaba por seu trabalho e pela
dedicação e amor à comunidade.